Folha de Sala Rebentos’25 – 13 Setembro

T-ZERO, 2023
Realização e Argumento VICENTE NIRÕ Produção JONAS CÉSAR, TIAGO RIBEIRO E TOM KNIGHT Animação ALEXANDRE SOUSA, ANA LUÍSA FARINHA E CRISTINA NETO Música ANDRÉ AIRES E FERNANDO C. LAPA Vozes RAQUEL ROSMANINHO, ANTÓNIO CAPELO, CAROLINA ALMEIDA, EVA PEREIRA E JOÃO FIGUEIREDO
T-zero é uma animação que retrata a crise habitacional que vivemos atualmente em Portugal, sobretudo nos centros urbanos, massivamente turistificados e violentamente esvaziados das suas gentes. Vicente Nirõ, que assume a realização deste filme, consegue oferecer-nos reflexões pertinentes sobre o problema ao colocar como personagem principal uma jovem agente imobiliária que, apesar da participação ativa neste meio profissional, sente também ela na pele o sufoco habitacional ao qual (quase) ninguém parece escapar. Sufoco talvez seja realmente apalavra acertada para descrever a presente realidade das cidades portuguesas, e T-zero enfatizaesta falta de ar, falta de espaço, falta de horizonte com o qual sonhar ao olhar pela janela.A personagem que acompanhamos na sua trajetória de colocação do outro numa precarização que ela mesma sofre – portanto, ela entende e conhece a dor que perpetua – expõe a brutalidade de um sistema económico e social que permite, e que por vezes não concebe sequer outra hipótese, senão a exploração do povo pelo próprio povo. Esta conjuntura enlaça-se com ainvenção e disponibilização de uma cidade-postal a ser abocanhada por presenças turistas, essasvisitas passageiras com impactos duradouros.Nesta animação acedemos às contradições absurdas de vivências do espaço urbano que já todes conhecemos, mas que ainda precisam das nossas gargantas – apesar do sufoco.
Vera Barquero
AMÉRICA, DO SUL, 2024
Realização MARIA CLARA BASTOS Argumento PEDRO LINGUITTE E MARIA CLARA BASTOS Produção Executiva CLARICE DUO Interpretação ZENAIDE, DEUSA E JULIANA ALBUQUERQUE Direção de Fotografia PEDRO MORENO Montagem e Assistência de Realização PEDRO LINGUITTE Direção de Arte CAMI CRUA
Nos arredores do Rio de Janeiro cai um cometa com um macaco milagreiro capaz de realizar desejos, e América ganha um rumo para a sua vida de estrada. Apesar da descrença com que normalmente é recebida, esta mulher mantém-se firme na sua convicção e alimenta uma resiliência feroz que vai crescendo e a vai guiando no caminho, repleto de duras lições, mas também de serendipididade, essa capacidade de descobrir algo agradável por acaso – o que rima com sororidade, a solidariedade entre mulheres, algo, não só presente, como central no filme de Maria Clara Bastos. A sorte que América vai tendo está diretamente relacionada às mulheres que encontra e que, de uma forma ou outra, a acolhem e a abençoam com amuletos de macacos. “Quer que eu cante para você?” pergunta-lhe a certa altura uma dessas mulheres, como que querendo embalar América, dar-lhe colo. Por contraste, a relação com homens é sobretudo geradora de deceção e raiva. As vivências e papéis de género são vincados e seguem estruturas sociais normativas que a personagem vai navegando e, eventualmente, furando para se aproximar pelo menos da sensação de auto-determinação. Nesta jornada periférica, do sul, e insubmissa, América nunca faz marcha-atrás, só carrega mais fundo no acelerador.
Vera Barquero
RATOS DO AR, 2024
Realização INÊS BRAZ VAZ E TIAGO TRALHÃO SMITH Com a participação de ADRIAN E AMIGUE, PIPA, LINA E TOMÁS
Um filme sobre pombos que talvez diga mais sobre os seres humanos que os domesticaram durante anos: selecionaram e cruzaram as suas espécies como entretenimento ou estudo, como fez Charles Darwin, por exemplo; treinaram-nos para mandar mensagens, como é amplamente conhecido; e chegaram a condecorar alguns destes animais por considerarem heróica a sua participação (ou melhor, instrumentalização) em ambas as Guerras Mundiais. Atualmente, contudo, os pombos são percecionados sobretudo como um problema de saúde pública, uma praga urbana. Ratos do Ar é trabalho de colagem de diferentes cidades e várias perspetivas sobre estes pássaros, tão presentes que já fazem parte da paisagem – até aparecem em fotos de turistas e comem o que estes deixam nos pratos. Os pombos revelam-se como uma possível lente através da qual olhar e pensar as cidades, quem as habita e como convivem aí pessoas e animais. Entram na conversa questões estéticas e de higiene – o que se pensa que é sujo, mas se tolera, o que se pensa que é feio e se aprendeu a evitar, a habituar-se de tal forma que já não se vê ou sequer se pensa a respeito. Ratos do Ar relembra-nos da arrogância humana que se julga mestre do mundo do qual é só mais um elemento ou, na verdade, difere bastante de outros seres, mas sobretudo pela sua incomparável capacidade de destruição.
Vera Barquero
BERRO, 2024
Realização, Argumento e Produção GABRIEL ANDRADE Banda Sonora e Sonoplastia PEDRO SILVA E JOSÉ JOÃO Fotografia PEDRO ALVESA
Impotência e crises na modernidade é o tema desta sessão de filmes que se fecha com Berro, uma explosão de cores, formas e emoções, talvez um grito de exaustão, desabafo, libertação ou pedido de socorro. Depois de passagens por ambientes citadinos, onde nos deparamos com diferentes ângulos e problemáticas da atualidade urbana, escapamos até à floresta, embrenhamo-nos o máximo que conseguimos, e quando achamos que já ninguém nos vai ouvir, soltamos um grito, deixamos que as sensações acumuladas ganhem seus próprios corpos. Esta ideia de que só longe das ruas congestionadas da cidade é que se pode berrar, que só quando chegarmos ao topo de uma montanha é que podemos, sem pudor, abrir as goelas, sugere uma dicotomia: a natureza como espaço de liberdade e a cidade como lugar de contenção. Aqui a modernidade, o suposto progresso, não acolhe nem tem ouvidos para as nossas palavras, pelo contrário, ensina-nos a engolir e a acatar. Docilmente nos vamos encaixando, mas dentro vai crescendo o cansaço que nos faz desejar uma floresta isolada onde purgar o que guardamos no corpo. Berro dá-nos essa oportunidade, a de pensar como e pelo que queremos gritar.
Vera Barquero

