Folha de Sala Rebentos’24 sessão 8
LITORAL, 2023
Com CLARA NOGUEIRA, JAQUELINE RODRIGUES, VANDA DIAS, JOÃO DIAS Realização FRANCISCO DIAS Argumento MIGUEL MAGALHÃES Produção CAROLINA DO LADO, FRANCISCO DIAS Composição Musical RAFAEL MAIA Direção de Fotografia ANTÓNIO PAULA Direção de Arte LILIAN DOYLE Montagem FRANCISCO DIAS
No filme Litoral, a erosão costeira tem marcas de inevitabilidade. O oceano avança implacável sobre a estreita faixa de areia em um quadro de natureza morta que ameaça engolir um bloco de prédios. Duas vizinhas se encaram através das janelas à beira-mar, testemunhas das investidas violentas da natureza. Uma fita que isola o perímetro e o reflexo da sirene no rosto abatido são composição do apocalipse iminente. Inundada pela musicalidade inebriante, a dona da casa se prepara para abandoná-la. Sua filha recolhe os pertences ao porta-malas e o vento assombra, como uma anunciação. O mar, outrora cúmplice, agora se apresenta como adversário feroz, demolindo tijolos, expondo o esqueleto das fundações e consumindo as memórias das fotos em preto e branco. Litoral é uma ficção revestida por uma sombra documental que se debruça sobre a transformação da paisagem e os rastros da debandada, num retrato angustiante do impacto das perturbações climáticas e de suas implicações na alma que leva com as ondas.
Helena Miranda
463 WEST STREET, NEW YORK, 2023
Realização JASMIM BETTENCOURT Narração MARGARIDA BETTENCOURT
Que carta é esta, que ouvimos ser lida durante o pouco tempo que temos para imaginar a vida de Margarida, como estrangeira, do outro lado do oceano? Quem a lê, mãe ou filha? Quem é Jasmim, que assina o filme, para esta gente? Talvez tão estranho àquelas imagens, como à sua natureza. Pois já lá vai o tempo da película, das correspondências transatlânticas e de uma Nova York repleta de carochas. E este é um testemunho dessa distância, que, mais que dois continentes, separa este de outro tempo. Naquele outro tempo, Margarida abandonou o seu país, deixando à sua mãe apenas um vislumbre da distância, um mar entre as duas. Neste, Jasmim encontra uma série de imagens e palavras que não lhe pertencem. Talvez reconheça os rostos, agora envelhecidos. Quem sabe se aquele bebé levado ao colo não é ele mesmo. Seja como for, terá de se entregar àquilo que não é seu como se de correspondência se tratasse, deixando aqui perguntas sem saber quando voltarão as respostas. E talvez encontre nestas imagens e palavras bem mais que memórias, talvez sejam elas evidências daquilo que se repete e que nos ajuda a saber que caminho tomar. Talvez ao reconstruir o passado, Jasmim nos faça sentir não as distâncias, mas aquilo que ainda é verdade. As ondas que batem nas rochas, um bebé ao colo da mãe, o vento que sopra nas rosas. E assim, sejamos relembrados que “Aqui também o céu é azul”.
Nuno Cintra
UNDER THE WING OF A NIGHT, 2023
Realização LESIA DIAK Com a participação de OLESIA ZALEVSKA, SVITLANA ZALEVSKA, MAKSYM ZALEVSKY
“Anda para os meus braços”. “Não”. “Porque não queres?”. “Porque.” Assim começa esta viagem com a pequena Olesia, sentada no sofá com a sua mãe. Na sua postura reconhecemo-nos todos. Já todos passámos a idade dos porquês e também dos “Porque sim.” Um olhar cabisbaixo, uma mão que ora brinca com o emissor do microfone, ora foge da mãe. A vontade de ficar ali, exatamente como está, nem mais um pouco para o lado. Só que esta birra tem muito que se lhe diga, revelando-se com o tempo a causa deste transtorno, que acompanha Olesia enquanto cresce e se transforma. Há guerra lá ao longe e o pai foi combater, deixando um vazio naquele sofá.
Achamos nós que a guerra se sente nos corpos caídos e nas cidades destruídas, mas esquecemo-nos que é coisa que se alastra bem mais. E aqui a guerra sente-se em Olesia e no seu dia a dia longe do pai. As distâncias tentam encurtar-se com videochamadas, mas o pai nem pode proteger a filha de se magoar com o próprio telemóvel. E quando diz a coisa errada, não tem como a abraçar. E ainda que Olesia dance e brinque com a mãe, do pai, a guerra não lhe deixou mais que uma imagem, que à distância tenta estar presente.
Nuno Cintra
OS ANIMAIS MAIS FOFOS E ENGRAÇADOS DO MUNDO, 2023
Com PAULO GOYA, WILSON RABELO, LUIZA JERRÔ, BEATRIZ ID, BRUNO MORENO Realização RENATO SIRCILLI Argumento
JOÃO TURCHI, RENATO SIRCILLI Produção CAMILA FONTES, PATRÍCIA LGLECIO Produção Executiva DIANA ALMEIDA Diração de Fotografia MATHEUS DA ROCHA PEREIRA Direção de Arte TATI OTAKA, TATIANE TAKAHASHI Mistura de Som NICOLAU
DOMINGUES, A3ps Montagem RENATO SIRCILLI
Jorge é um senhor de 70 anos que limpa as suítes do Motel Paraíso. Mas ele é muito mais do que isso. Secretamente, grava e vende as interações que acontecem nos quartos, compilados de gemidos e conversas, incorporando a privacidade alheia à sua própria narrativa. Ele vende esses sons a Alberto e conectados por fones de ouvido, exploram uma nova perspectiva sexual, em que o prazer é retroalimentado pela descrição que Jorge faz dos clientes. A desimportância da violação da privacidade é sublimada pelo desejo invisível desses homens. Este contrabando integra a experiência dos corpos rejeitados e a fronteira entre intimidade individual e coletiva é dissolvida. Os animais mais fofos e engraçados do mundo é uma experimentação de agenciamento dos seus personagens materializada em ondas sonoras. Esse prazer revela a vulnerabilidade dos corpos idosos e a solidão em convergência a uma reflexão existencial sobre conexão. Ultrapassando a moral, este filme proporciona a experiência de sair do próprio corpo em um movimento contrário que nos aproxima e nos obriga a encarar a matéria. A ausência das imagens descritas abre um espaço fértil para a dessubjetivação em que a intimidade final se concretiza quando Jorge ouve uma conversa sobre animais fofinhos vistos através de um ecrã quebrado, alinhando sua carência emocional e carnal. Em uma poesia transversal e um jogo sonoro violento, ele macera a ferramenta que supre seus desejos, extraindo à força o sentimento e encarando Alberto de frente – aquele corpo que jamais poderá ser ignorado.
Helena Miranda
MARIZABEL, 2020
Realização GABRIEL MARMELO Montagem GABRIEL MARMELO Pós-Produção LUÍS PEREIRA Texto MANUEL JORGE MARMELO
Legendagem LUÍZA LUZ
A ausência de Marizabel desvanece-se neste documentário íntimo e silencioso que abre as portas de um lar de acolhimento e melancolia. Suas mãos enrugadas, seu travesseiro solitário e sua voz se diluem em uma rotina delicada e persistente conduzida por Alexandre, seu marido, em uma simbiose chamada Alzheimer. O dia se arrasta em uma cadência etérea, pontuado pelo som da televisão, pelo tilintar da colher no prato de sopa e pela presença fugidia dos gatos no quintal. Nosso testemunho – descentralizado, contemplativo – ao abrir das persianas e às fatias perfeitas de pão existe apenas nesse território de afeto e antecipação. Marizabel emerge em uma zona nebulosa entre a constatação da presença e da ausência, o início fatal de um ciclo de deterioração, de dedicação e do fim. A tessitura do filme de Gabriel Marmelo é composta por gestos que se revelam e se desmancham lentamente, amparados nos cuidados de Alexandre, que desenham os contornos de uma história que começa pelo epílogo
Helena Miranda
A CUP OF COFFEE?, 2023
Realização MAGDALENA STEINER Direção de Fotografia ADAM BAROUD Som LENA ZEEHNER Com a participação de ROSWITHA, VALERIAN ZIMMERMAN, MATHIAS KAHLER POLAGNOLI, CLEMENS BARE
Entramos num estranho mundo, ainda que tão próximo. Mas era capaz de jurar que já ouvi esta história antes e que, a qualquer momento, em qualquer prédio, poderia encontrar qualquer coisa assim. A solidão não se esconde, a solidão está à vista de todos. Seja nas maiores avenidas, nas ruas mais estreitas, ou nos trabalhos mais comuns. E no mundo do dever, cada um na sua bolha, a defender o seu. Uns pelo dinheiro, outros por uma crença maior, todos sós a cada momento de rejeição. Quantas vezes sozinhos em casa, desligando o telefone, pensámos o que sente o operador do callcenter? Ou o revisor do comboio, já vai na terceira carruagem e ainda ninguém lhe respondeu ao “bom dia”? E o trabalhador de uma portagem, ao nonagésimo carro? Talvez sintam o mesmo que estes três homens, incomodados por serem tão bem-vindos e enganados por acharem que é a viúva quem está só.
Nuno Cintra
Ficha Técnica:
- Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra
- Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
- Coordenação Rebentinhos: Laura Lemos
- Direção Técnica: Rodrigo Domingos
- Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
- Design: Ivânia Pessoa
- Financiamento: Câmara Municipal de Sintra, ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual e IPDJ – Instituto Português do Desporto e Juventude
- Apoio: teatromosca
- Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra, Escola Básica Maria Alberta Menéres e Escola Secundária Leal da Câmara