Folha de Sala Rebentos’24 sessão 6
ACLARAR, 2023
Imagem, Som e Montagem ISABEL MEDEIROS Relatos MANUEL JOAQUIM MEDEIROS e MARIA DE FÁTIMA MEDEIROS
A erupção de um vulcão é um evento difícil de situar no tempo. Essa imprecisão dos narradores de ACLARAR contrasta com o pendor matérico das imagens de arquivo que Isabel Medeiros usa. O filme conduz-nos, assim, numa deriva entre o concreto do visível e a digressão imaginativa das vozes, através de um bordado rítmico depurado. Tendo como pano de fundo os anos de 1957 / 1958 nos Açores, a memória coletiva dos acontecimentos que então têm lugar é difusa, mas profunda e marcante em quem os viveu. A atividade vulcânica, que Herberto Helder associava a uma revelação continua em Photomanton & Vox,
num paralelo com Sófocles e Ésquilo, é aqui equiparada à destruição e criação do mundo. O “respirar da terra”, nas palavras de um dos contadores desta estória, tem consequências na reconfiguração do espaço natural e humano. Persiste ainda um mundo antigo, como demostra a figura do sacristão, confessando no
“caminho das areias”, ou da mulher que costura durante a trovoada. Insular e mitológica, a curta que inicia esta sessão tem também algo que ver com a natureza do cinema, um trabalho que irrompe com o fulgor da lava e se vai “fazendo, fazendo, fazendo” até firmar a sua própria cronologia.
CASA DO BONJARDIM, 2023
Realização, Fotografia e Montagem CAMILLE SALVETTI Mistura PETER HOSTAK Correção de Cor DIVISION COULEUR MONTRÉAL
Como fios em mãos de moiras que tecem o destino as linhas de luz por desenlear no rio. Uma tipografia em mudança parece interromper a viagem, dissipada a bruma. Em CASA DO BONJARDIM o lugar de construção é primeiro um lugar de destruição. A demolição da estrutura da casa para erguer, uma vez removido o entulho, um novo edifício de vidro e alumínio parece ameaçar a vida da comunidade, perturbar o vagar dos seus dias. “Belíssima sinfonia”, diz o promotor, à distância de um telefonema, referindo o seu apreço por sítios de construção inacabados. No concreto da cidade, cai uma pedra. O idealismo contra a dureza dos materiais, o plano desenhado face ao processo de quem o executa, a nitidez das imagens face ao esquecimento. Não vemos a rua, mas a cara dos operários sobre o andaime, a tensão e o silêncio. Não sabemos se a câmara é cúmplice em algum possível acidente de trabalho ou crime. Por casual acutilância ou premeditação, Camille Salvetti capta esse momento e torna-o trave-mestra desta sua busca pelas causas do movimento urbano a que se submetem anónimas vidas.
LOVE AFTER DEPART, 2023
Realização MARC ESQUIROL Argumento PAU BERLANGA e MARC ESQUIROL Elenco SANDRA CRUZ BARDINA, GERARD CASAS e SOL ROCABERT Produção MARC CAMARDONS e CARLES PUJADAS Assistente de Produção MARC ESQUIROL, MIGUEL GONZÁLEZ, ALBERT MARINÉ, VICTOR TORRENS e ANA WISWELL Coordenação de Produção JOANA GALIANA Direção de Fotografia PAU MIRA Montagem COBO JAVIER Direção de Arte CLARA ESTEVEZ Assistentes de Realização MIGUEL ÁNGEL FERREIRO Assistentes de Arte JANA BORJA, CLARA BORJA e CAILE CHINER Direção de Som ARTAU CAZENUEVE Assistentes de Som EDUARD MARTÍ, ALBERT MUNDÓ e MARCEL BERGER ROCA Mistura JORDI RISSECH Eletricistas GERARD BUFÍ, SIMÓN GRACIA, ANDREA LEBRERO, LAILA MEDINA, ORIOL TARRSÓN e PAU UREÑA Assistentes de Câmara KWAME CARLOS GARCÍA, GEMMA GOMIS, FERRAN HERNÁNDEZ e OLAYA JORDÁN
Pela pureza das termas interiores e dos cumes nevados da montanha antevê-se uma paixão pura e luminosa, logo quebrada na estranheza da fotografia. A continuidade das cores de LOVE AFTER DEPART, um vermelho e azul próprios, mesmo que interrompidos pela quase nudez, acentua a distância. Um beijo recusado e logo a aqueda de água lançando a questão: até que ponto limpa uma paixão não correspondida a água? Depois da hesitação pensativa ao som de Franco Battiato, o equilíbrio parece estabelecer-se sobre o excesso de intimidade. Só na proximidade dos corpos se confessa o mais fundo sentimento. Quando a separação se mostra iminente, um carácter, herdado do flamenco, do tango, (do fado?), uma espécie de melodrama camuflado em doçura aflora os rostos. Segue-se um devorar mútuo, amor-morte consumado, e a partida que comporta sempre o fim.
NA MINHA VIDA, 2023
Escrita, Realização e Montagem JOSÉ LOBO ANTUNES Montagem e Mistura de Som VICENTE MOLDER Música ANTÓNIO PEDRO
A memória da família igual à da nação. Viriato, assim emplumado de tal desígnio (enganador), mais que um simples vendedor de carros na rua do Desterro, e mais tarde desterrado no Ribatejo. Tudo isso não diz a primeira fotografia de NA MINHA VIDA, uma das encontradas no envelope amarelo. Ao discorrer sobre as
imagens nele contidas, o narrador enceta com elas um diálogo que é, em simultâneo, consigo mesmo. O tom é o de um rapaz que, embora um pouco naïve ao absorver o mundo, se deixa deslumbrar pelo poder das fotografias, pela verdade dos rostos e pela situação que estas continuam a criar, quando debruça sobre elas o olhar. As casas, a família, o poema de Eugénio de Andrade, todos eles elementos de uma cosmogonia própria que, miniatura a miniatura, emerge contra a dispersão da vida.
BRAIS’S VIDEO, 2023
Diretor VÍCTOR GARCÍA Guionista VÍCTOR GARCÍA Produtora JUDITH FIERRO Companhia Produtora ECIB (ESCOLA DE CINEMA DE BARCELONA)
Querer ser adulto e para isso filmar. A imposição da câmara a quem ela interpela torna a criança de BRAIS’S VIDEO numa jogadora de códigos desconhecidos. Porque a inocência pode por a nu a verdade da existência. Todos procuram “passar um bom tempo” na assembleia de amigos, onde se chega pelos arvoredos da montanha. Os entrevistados especulam sobre as suas vidas, contam estórias e piadas, enquanto uma outra criança convida ao seu jogo. Entre perguntas e um sentar à mesa, à parte dos copos e dos cigarros, que comprova a sua idade, na iminência do aborrecimento, é inevitável brincar. Pergunta-se, então, não é o cinema coisa de crianças? Para aceder por completo à linguagem dos crescidos é preciso crescer primeiro. Através da câmara de filmar ou da bola de futebol, o jogo é parte dessa aprendizagem.
OSTRA NEGRA, 2023
Direção, Produção, Montagem e Banda Sonora JOÃO CARLOS PINTO
Carrega o silêncio da violência a chegada do exército em OSTRA NEGRA. Uma expedição que penetra na leveza das paisagens, ao som da música drone imersiva. Só a morte do primeiro soldado afecta os restantes, o sangue, o ódio, podemos vê-lo pela sua expressão. Inventar um país na óptica militar, como refere Ahmed Bouanani na sua História do Cinema de Marrocos em relação à chegada da máquina de filmar com o exército francês ao Norte de África. É assim que vemos criada antes os olhos a Guiné-Bissau, filmada por algum pupilo do império ou rebelde escutando canções de intervenção na pausa do tiroteio. Não é clara a montagem quanto à intenção dos operadores de câmara, ela propõe antes a sua narrativa: um entrar que se densifica à medida que a sequência se expande, a aparição do olhar negro, a carnificina em que culmina o encontro das forças opostas. O rosto da morte é também o rosto da guerra. Olhar o passado como um vulcão, abrupto ou continuo, profano ou mitológico, ele continua a exigir a nossa atenção e a deixar-se absorver em novas formas.
Afonso Fragoso Matos
Ficha Técnica:
- Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra
- Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
- Coordenação Rebentinhos: Laura Lemos
- Direção Técnica: Rodrigo Domingos
- Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
- Design: Ivânia Pessoa
- Financiamento: Câmara Municipal de Sintra, ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual e IPDJ – Instituto Português do Desporto e Juventude
- Apoio: teatromosca
- Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra, Escola Básica Maria Alberta Menéres e Escola Secundária Leal da Câmara