Folha de Sala Rebentos’24 sessão 3
Espelho Eu, 2021 | Beatriz Alves Ribeiro
5/3/0, 2021 | Danilo Stanimirović
Vanette, 2023 | Maria Beatriz Castelo
Às Vezes Os Dias, Às Vezes A Vida, 2022 | Janine Gonçalves
Suzie, 2023 | Jimmy Dean
Espelho Eu; 5/3/0; Vanette; Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida; Suzie: cinco curtas-metragens, três realizadoras femininas, seis protagonistas mulheres. Estes cinco filmes advêm de uma seleção que pretende contrastar com o hábito da cultura cinematográfica de representar a mulher como hipersexualizada, objetificada, submissa, passiva e apenas digna de um papel secundário que se encosta ao protagonista masculino forte e empoderado. Estes filmes conseguem ter ainda o papel de quebrar um padrão de representação e contribuir para uma desconstrução do papel e identidade da mulher enquanto personagem, enquanto trabalhadora do audiovisual e enquanto espectadora.
Em Espelho Eu, Biatriz Ribeiro oferece-nos uma espécie de compêndio daquelas que são as lutas femininas, em jeito irónico e de rima com a Enciclopédia da Mulher, ponto de partida para o seu trabalho experimental. Sempre sem perder o tom jocoso e colorido, esta montagem experimental revisita os preconceitos que a mulher enfrentava nos anos 70 (e ainda hoje!) e a forma como esta era vista por uma sociedade que se regia por um sistema machista, identificando o homem como figura que lidera.
Contrastando com o tom satírico de Espelho Eu, 5/3/0 dá ao espectador um murro no estômago. É aqui que vemos a protagonista mais jovem desta sessão, explorando os medos e perigos de ser uma rapariga adolescente e a crueldade masculina. Este filme não adota o tom satírico para nos falar de assuntos sérios, mas sim um tom cru e quase documental. Há uma enorme insegurança sentida pelas mulheres ao andarem sozinhas à noite, ao andarem simplesmente sozinhas, e muitas vezes apenas ao existirem. Ser mulher é saber que somos o elo mais fraco, o ser mais frágil, aquele que é abusado e, por razões muitas vezes fisionómicas, aquele que não consegue vencer a luta. Não há uma de nós que fique com aquela imagem final da parte de trás do carro e que não consiga colocar-se no banco da frente juntamente com Saška.
A insegurança não abandona esta seleção de filmes que agora vê como protagonistas um casal de mulheres lésbicas que escolheram viver uma vida nómada, em Vanette. Estas duas personagens estão completamente à margem da sociedade como a conhecemos hoje em dia. Por não terem qualquer apoio nesta sua escolha de desconstruir o “eu” feminino sem todos os preconceitos que historicamente lhe vêm agregados, enfrentam várias adversidades ao longo da sua jornada. O corpo da mulher é tema comum a todos estes filmes: como estas olham para o seu corpo e como os outros tratam este corpo. Daí o espelho ter um papel muito importante nesta representação, apesar de mais evidente em Espelho Eu e Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida, o espelho ajuda a desconstruir os preconceitos que temos face ao corpo da mulher e ajuda a tornar estes filmes uma carta de amor aos corpos, de diferentes tons, formas e feitios, destas mulheres. Ainda em Vanette, a realizadora Maria Beatriz Castelo mostra-nos os corpos destas mulheres e em nenhuma altura os hiperssexualiza, mas por outro lado, denuncia a hiperssexualização de que Eva e Sónia são vítimas no seu dia-a-dia.
O dia-a-dia e a rotina são assumidamente o mecanismo narrativo das duas curtas-metragens que finalizam esta seleção. Tanto em Às Vezes os Dias, Às Vezes a Vida como em Suzie acompanhamos uma mulher que é também mãe. Todavia, na primeira curta-metragem, esta mãe é mais jovem, trabalhadora (tem aliás dois trabalhos) e viúva, tendo apenas os seus pais para a ajudarem a cuidar da sua filha. Suzie, a personagem da segunda curta-metragem, é dona de casa, mais velha e vive uma relação profundamente infeliz e solitária com o seu marido. Não costumamos ter este tipo de mulheres como protagonistas no grande ecrã, contudo esta falta de representação ou, neste caso, representatividade (no sentido em que já não estamos a falar de ter a mulher presente nos filmes mas sim “representada” neles pela sua verdadeira essência) levou os realizadores de ambas as curtas a sentirem a necessidade de contar as histórias das suas próprias mães (para eles, umas super heroínas, apesar de não ser assim que a sociedade as vê).
Tanto numa como noutra, estamos perante o retrato melancólico de uma mulher que parece descolada da sua verdadeira essência e identidade. No caso de Suzie, esta acaba por encontrá-la num pedido de separação, no caso de Lena, através de uma cena de amor com o seu próprio corpo (o tal tema tabu da masturbação). Como é que no século XXI, um tema como o prazer feminino pode ainda ser tabu e chocar tanta gente? É mais uma das provas de que não estamos tão desconstruídos como achamos estar e é perigoso pensar que já atingimos algum tipo de igualdade na forma como somos vistas e representadas.
Ao longo da História, muitas mulheres lutaram pelos seus direitos, como o direito à autonomia, à integridade do seu corpo, ao aborto, ao acesso à contracepção e ao planeamento familiar, à licença de maternidade, e é assustador o quão facilmente estes direitos podem deixar de o ser. Por isso, quando se ouvem frases como “este tema já foi muito falado” ou “sempre que se fala de mulheres, falam-se das mesmas coisas” é preciso fazer ver que nunca é demais, nunca foi demasiado falado ou nunca deixou de ser urgente e necessário continuar a falar e a desconstruir a mulher, o seu papel e a sua representatividade e o cinema é um instrumento muito poderoso nesta luta. Ainda há muito que “marchar” na luta pela igualdade de direitos, na procura por um lugar de segurança e pela mudança de uma sociedade que viveu anos e anos subjugada pelo patriarcado.
Biatriz, Saška, Eva, Sónia, Lena e Suzie são a representação de todas nós mulheres e que venham muitas mais personagens como elas.
Inês Moreira
Ficha Técnica:
- Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra
- Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
- Coordenação Rebentinhos: Laura Lemos
- Direção Técnica: Rodrigo Domingos
- Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
- Design: Ivânia Pessoa
- Financiamento: Câmara Municipal de Sintra, ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual e IPDJ – Instituto Português do Desporto e Juventude
- Apoio: teatromosca
- Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra, Escola Básica Maria Alberta Menéres e Escola Secundária Leal da Câmara