Folha de Sala Rebentos’23 sessão 5
ANACLETO DISSE QUE NÃO, 2021
Realização e Argumento HUGO BASTIAS Produção MIGUEL MARQUES, DIOGO PEREIRA Imagem JOÃO TIAGO SANTOS Montagem BRUNO PINHO Interpretação NUNO MACHADO; CECÍLIA HENRIQUES
Em Anacleto Disse Que Não somos guiados por um talhante e uma mulher grávida, para um mundo surrealista, onde no talho se vendem maçãs e da gravidez nascem mãos. Neste mundo não é a Branca de Neve que se arrisca a dar a dentada, mas sim esta mulher, que na sua imensa solidão terá de ser mãe. O que a sociedade teima em ver como um milagre, um momento de pura alegria e a concretização, é aqui revelado em todo o seu tormento. Afinal a gravidez também é feita de medo, de dor, de perda de sentido e de deformação. Não é por acaso que existe a psicose puerperal (após o parto), causada por violentas mudanças hormonais. A gravidez é a divisão de um em dois, uma transformação que transcende a nossa compreensão e que leva o corpo e a mente ao seu limite.
Correção de Cor e Luz Nesta curta-metragem, Hugo Bastias traz-nos então este universo da gravidez, através de um pesadelo, onde um talhante vende maçãs, a luz se deforma e muda inesperadamente, numa construção elíptica que desafia o senso comum.
Nuno Cintra
SWEET DREAMS, 2022
Realização, Argumento e Produção MARIA ZILLI e SARA PRIORELLI
Acompanhamos uma mulher em mais um dia de trabalho como empregada de limpeza de um motel. A rotina é monótona, as tarefas aborrecidas e até repulsivas. Os hóspedes que a este sítio vêm parar são antipáticos e abusadores, entretêm-se a humilhar essa mulher com empurrões, pedidos descomedidos, olhares e risos de gozo. O próprio rececionista desconsidera com arrogância o valor do trabalho e da própria pessoa que, na verdade, é fulcral para o funcionamento do motel. Sweet Dreams é ironicamente o nome deste estabelecimento cujo ambiente é tudo menos doce, carinhoso e agradável. Realizado e animado por duas jovens italianas, Maria Zilli e Sara Priorelli, este filme desenrola-se ao ritmo ponderado da personagem principal que engole repetidamente em seco perante as constantes afrontas de que é alvo, apesar de claramente incomodada. O dia não chegará ao fim sem que os limites da sua paciência sejam atingidos e sem que um sentimento implacável de vingança tome conta dela. Maria e Sara constroem esta comédia negra de forma brilhante, costurando nela uma crítica social à forma como culturalmentese despreza e abusa de quem trabalha como empregada de limpeza, tipicamente mulheres.
Vera Barquero
BALUARTE, 2020
Realização e Argumento LUCAS MELO Produção MARGARIDA ALBINO, DAVID CARP, MARGARIDA VAZ, MARTA LEANDRO, LUCAS MELO Imagem JOÃO RAMOS; JÚLIA NOGUEIRA Montagem LUCAS MELO, JOÃO DIAS, VICTOR JORGE Som MIGUEL TAVARES, INÊS MONTEIRO, RICARDO VAZ Interpretação LUCAS MELO; LAURA GARCIA
Haverá algo mais triste que falhar a própria morte? Lucas Melo diz-nos que sim e entrega-nos este filme, aparentemente amador, cuja casca esconde um retrato cuidado, cínico e desprovido de floreados, de uma história de amor depois de um suicídio falhado. Fazendo relembrar o humor perfurante de um dos vultos cimeiros do cinema português (falo de Monteiro, claro), esta não é, no entanto, uma simples homenagem.
Este filme, transporta a mesma irreverência e sarcasmo para os dias de hoje, não fugindo ao calão, à globalização, aos estrangeirismos, à nostalgia barata e ao absurdo que é viver sem ter de lutar, viver para vaguear. Este filme com um cariz autobiográfico (também o personagem principal e realizador é músico de jazz), não é feito de muito mais que uma forma de ver e estar (a de Lucas, talvez?). Uma forma de estar que pressupõe pouca coisa no enquadramento, vive das palavras e do seu encaixe, de uma indiferença em mostrar mais que apatia, e de um gosto por conversas banais sobre coisas que nos rodeiam todos os dias, procurando em pequenas pontuações e pequenas brincadeiras, formas de questionar aquilo que nos rodeia (o vinho a cair no copo no final da música de paredes, o personagem principal a navegar no interior da Bela Sombra).
Haverá algo mais triste que falhar a própria morte? Sim, sobreviver para perceber o que nos encanta na vida, falhar no amor e decidir morrer outra vez.
Nuno Cintra
HOWL, 2021
Realização, Argumento e Produção AMIR NAJAFI Interpretação BEHZAD DORANI e MOJAN KORDI Câmara FARHAD TALEBINEXAD Gravação de Som ALI ALAVI Edição VAHID RABODAN Correção de Cor e Luz AMID FOTORECHI Assistência de Realização AMID HOSSEINIPOUR
Em Howl fazemos uma viagem de carro com os recém-casados Jalil, de 50 anos, e Niloufer, de 25. Numa ambiência de constante neblina, os dois seguem pela estrada que atravessa uma paisagem natural – vão ao encontro da família de Jalil para que Niloufer lhes seja apresentada. Contudo, tal evento coincidiu com a morte de um elemento da família e, por isso, eles viajam também para o funeral. No caminho, Niloufer não consegue conter o riso, como resposta ao stress que sente com o encontro de que se aproxima, e a tensão entre o casal vai-se intensificando. O filme faz-se do caminho e da conversa entre os dois, que nos vai revelando uma certa amargura, pela troca de palavras rudes e de momentos oscilantes de confronto. A partir do riso descontrolado de Niloufer, outros temas mais profundos da relação entre os dois começam a ser desvendados: formas de pensar sobre a família, a tradição, a reputação, o trabalho e o próprio amor são reveladas através deste casal e das suas reações ansiosas, e por vezes manipuladoras, da situação em que se encontram.
Vera Barquero
ÚLTIMA HORA, 2023
Realização e Argumento RICARDO GREENOUGH-GUERREIRO Direção de Fotografia FÁBIO MOTA Direção de Arte e Gráficos KIM SCHADLICH Som CAMILLE SALVETTI E MIGUEL MADEIRA Produção COLETIVO PÁTIO Interpretação FERNANDO DOMINGOS
“Podiamos lhe falar de coisas boas do mundo, mas não – aqui estão elas, as notícias de última hora” é o que começa por dizer a pivô do noticiário pelo qual aparentemente todas as pessoas idosas da vila estão hipnotizadas. No café onde se reúnem, as pessoas não interagem umas com as outras, apenas fixam a televisão de onde incessantemente absorvem informações trágicas que ocorrem nas redondezas. Jacinto é a personagem que nos leva por esta vila e nos dá a conhecer o panorama em que vive. Vamos percebendo que o grande desejo deste homem é aparecer numa notícia de última hora, e que ele está disposto a ir muito longe para o conseguir. Última Hora cria uma realidade absurda, mas que se baseia no encantamento pelo sensacionalismo a que de facto assistimos no quotidiano. O filme satiriza a importância desmedida socialmente dada ao relato de eventos chocantes, mas provavelmente vazios. Há aqui uma desconexão dos vínculos comunitários e um aprisionamento ao papel de audiência televisiva. Realizado por Ricardo Greenough-Guerreiro, Última Hora faz uma crítica certeira e bem-humorada ao modo de transmitir e receber informação.
Vera Barquero
IN THE UPPER ROOM, 2022
Realização, Argumento, Montagem, Música e Ilustração ALEXANDER GRATZER Produção JÓZSEF FÜLÖP Som KALOTÁS CSABA Animação ALEXANDER GRATZER, NATÁLIA ANDRADE, MARIAI GÁBOR, SEBASTIAN DORINGER Interpretação ALEXANDER GRATZER
“Porque é que o meu avô está tão longe?”; “Porque é que eles [os avós] querem sempre um presente? E porque é que vivem num buraco?”. É desta série de questões que partimos em In the Upper Room, um filme de animação que nos chega da Austria, assinado por Alexander Gratzer. Um retrato íntimo que revela momentos vividos entre o realizador e o seu avô. Vöslauer Opa (a alcunha que Alexander tinha para ele) era um homem muito alto e cego, que se costumava sentar no seu grande cadeirão a ouvir jazz e partir nozes para oferecer às pessoas. Ele e Alexander viviam a centenas de quilómetros de distância. Quando o visitava, Alexander gostava de se aproveitar da cegueira do avô, roubando-lhe pequenas coisas. Até que um dia Alexander lhe perguntou: “Avô, alguma vez te perguntas como eu me pareço? (…)” e ele lhe respondeu “Eu sei exatamente ao que pareces, Alexander!”. E o neto aprendeu que o avô conseguia ver bem mais do que achava. O resto é fantasia, que transforma avô e neto em toupeiras e reinventa a vida para revelar nela o que há de mais mágico e verdadeiro.
Uma relação entre avô e neto, da idade dos porquês até à idade das despedidas e das lembranças, sintetizada em pequenos momentos de ternura, gestos que se repetem: as flores, oferecidas no primeiro encontro e na despedida; as nozes, que o avô lhe ensinou a abrir; e o disfarce de pássaro, que Opa usava no dia em que Lixie nasceu. É um vislumbre a traços largos do melhor que a animação nos pode dar, dando-nos a ver a transformação da vida e criando espaços e relações, através da cor, do movimento e da imaginação.
Nuno Cintra
RILHAFOLES, 2022
Realização DIOGO PALMA
Rilhafoles dá nome ao filme de Diogo Palma e foi também outrora nome do Hospital Miguel Bombarda, o primeiro hospital psiquiátrico português, que abriu as portas em 1848 e as fechou em 2011. O tema desta curta-metragem é precisamente esse espaço, agora vazio de vivência humana, antes povoado por pessoas com doenças mentais aí institucionalizadas. É impossível os vestígios do passado não emanarem das paredes, portas, janelas e objetos esquecidos. Diogo Palma fixa detalhes dos espaços com vagar, dando-nos o tempo para sermos absorvidos por uma quietude com tumulto dentro. Alternadas com as filmagens, as fotografias de José Fontes do quotidiano do hospital no final dos anos 60 expandem esta exploração ao passado, mostrando-nos corpos humanos nos lugares que sabemos há muito desabitados.Convidados a mergulhar nessas cristalizações, imagens congeladas de vidas nunca quietas, não conseguimos evitar pensar sobre o tempo, inevitável passagem que nada deixa intacto. Há sem dúvida fantasmas que se revelam em Rilhafoles, presenças antigas que permanecem sem nunca pronunciarem uma palavra.
Vera Barqueiro
Ficha Técnica
- Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra
- Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
- Direção Técnica: Rodrigo Domingos
- Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
- Design: Ivânia Pessoa e Mariana Correia
- Produção: Carolina Pinto, Mariana Gavela, Nuno Cintra e Rita Teixoeira
- Fotografia: Sara Farias
- Vídeo Promocional: Carolina Pinto e Ivânia Pessoa
- Apoio: Câmara Municipal de Sintra e IPDJ – Instituto Portugês do Desporto e Juventude
- Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra