Folha de Sala Rebentos’23 sessão 4

NORLEY Y NORLEN, 2017

Realização FLÁVIO FERREIRA Participação NORLEY VALDESPINO & NORLEN VALDESPINO

Norley y Norlen, de Flávio Ferreira, é um filme que acompanha, por breves minutos e em diversas circunstâncias, a vida de dois irmãos que dão o título ao filme, filme este que, por sugestão do realizador de cinema alemão Werner Herzog, ganhou o subtítulo de “Os Ninjas Cubanos”.
Norley y Norlen é um filme — uma reflexão — sobre linguagem e a intimidade que esta convoca ou neces-
sita para se desenvolver. Não me refiro aqui à linguagem enquanto palavra, enquanto diálogo, mas antes à linguagem como mera expressão — e, neste caso, a expressão corporal, a torção dos membros, a
repetição incessante dos mesmos gestos, o respirar. Portanto: não a linguagem como um meio para atingir um fim (um “meio de comunicação”), mas a linguagem como puro meio, como expressão daquilo que não quer atingir ou chegar a nada, que não pretende comunicar rigorosamente nada, mas que é a mais pura expressão de uma intimidade partilhada por estes dois irmãos.
Norley e Norlen, antes de serem ninjas, são dançarinos.

João Ayton

JOAQUINA, 2022

Realização MARTIM BAGINHA CARDOSO Elenco RITA RODRIGUES PEREIRA, RITA CABAÇO, MIGUEL
AMORIM, TOMÁS FERREIRA Produção PABLO IRAOLA Diretora de Produção ANA MANANA Assistente de Realização RICARDO BRANCO Diretor de Fotografia RAFAEL MATOS Diretor de Som BERNARDO THERIAGA Diretor de Arte JOÃO REIS Montadora MADALENA ALPOIM

O secreto sigilo da morte interrompe o alegre trautear. Um tiro. Joaquina, criança inocente é atraída ao barulho, afastando-se do riacho onde abrimos com o primeiro plano. Uma raposa baleada, sangrando. A fisicalidade do instante surge no filme.
Joaquina pode ter sido acordada para uma curiosidade mórbida; Tomásia pode também ter sido obrigada a redobrar a atenção no seu cuidar. No entanto, o que parece reger o filme em questão ultrapassa o micro-cosmo desta relação a três; tendo como terceiro membro: o casaco de peles da mãe de Joaquina. Novamente, num instante, dão-nos a premissa “de um morto fazemos matéria”. Prendemos uma alma à terra que por direito achamos pertencer e aos olhos de uma criança “assim não pode ser”. Numa resignação ajustada à sua pequenez, mas com uma determinação capaz de subjugar um mundo, Joaquina não pode aceitar o final daquela raposa e foge de casa em direção ao monte.
Não deixa de ser macabra, mesmo assim, a necessidade simbólica de intervirmos no ciclo natural. A morte não é uma opção, mas sim imposição. Sem mão de Homem envolvida, somos incapazes de aceitar o final como ritual. Se a vida é caça, a morte caçada e a desgraça prolongada; nem o eterno descanso servirá para nada. Nesse mesmo ciclo, fechamos o filme no riacho, onde repousa corrente uma raposa embalada pelo silêncio de um alegre trautear.

Gabriel Nery

BAGHTHAN, 2022

Realização SUNIL PANDEY Direção de Produção RAM KRISHNA POKHAREL, NAWA NIDHI DAHAL Direção de Fotografia SARAD MAHATO Direção de Som KISHORE ACHARYA Montagem PASANG DAWA SHERPA, SUNIL PANDEY Tradução SAVIK GURUNG

O que nos chega, ao longe, reverberado é o eco e nada mais. A pegada dos caminhantes que transitam na sua eterna migração. Seres tecidos no fio da vida, esculpidos pela mesma melodia que nos assombra. Em Baghthan, é nos oferecida a oportunidade de sentirmos a dimensão da nossa presença, passada, presente, futura. Inertes, eternas e para sempre imóveis, apenas são as árvores testemunhas da nossa resignação.
Um velho e sua família; um grupo de caçadores; uma irmã do destino. De uma forma pragmática, estas são as três linhas narrativas proporcionadas. No entanto, encaro esta oportunidade para traçar curiosos paralelismos. Utilizei anteriormente a expressão “fio da vida” longe de escolha vã. As Moirai (como são conhecidas no estudo da antiguidade grega), traduzem o seu puder em vastas culturas. “As irmãs do destino” são: Clotho, a tecelã e originadora do fio; Lachesis, a medidora e por último Atropos, encarregue de, quando assim o achar, cortar o fio.
Agora, numa dedução mais abstrata: não será a dissolução aparente destes três momentos, uma cortina erguida pela natureza que nos rodeia? Evocada pelas profundezas do vale a sua precisão temporal dilui-se.
Num canto eterno, embalando as almas virgens, Clotho cultiva os campos, assombra os habitantes, lisonjeia as estações, acautela os horrores. Lachesis, transitória na sua demanda, relembra histórias passadas e acompanha o neto. Por último Lachesis, com a precisão de um caçador dispara sobre o tigre, ditando fim à fome, ao medo, à vida. Forçar compreensão seria desenxabir Baghthan. Os sentidos são apurados pela mesmerizarão e contemplação. Mas algo mexe, algo muito violento acorda no nosso interior. Acredito que, no mais integro dos respeitos, o filme é memória viva.

Gabriel Nery

CENTRAL DE PARIS, 2023

Realização PEDRO GUS, LARISSA LEWANDOSKI Som JOPE SOUND Elenco JOÃO, LEONEL, MÓNICA CALLE

Quando pesquisamos a definição de parábola, das duas uma: ou conto ou trajetória. Acredito que este filme se apoia duplamente em ambos os sentidos lecionados. Quer seja a partir de uma verdade moral, ou de um estudo proporcionado pelo microcosmo em questão (um café-restaurante em Lisboa), não fugimos ao puxar gravitacional deste pequeno purgatório pessoal. “Comparação desenvolvida numa história curta utilizando elementos quotidianos, ilustrando dessa forma uma realidade”. Na sua rotina de estabelecimento, conhecemos um arquétipo do que são intermináveis portugueses e os seus respetivos comércios locais. O enterro unitário de uma vida dependente do que o rodeia. A solidão e a resignação já fazem parte da mobília. Os encontros, como espectros, não deixam as suas marcas nas paredes cinzentas, são espectros na sua própria trajetória.
“Curva onde os pontos estão igualmente distantes de um ponto fixo, intercetados por uma diretriz”. Apelo a este segundo sentido pela sequencialidade do ponto a que me referia anteriormente. Existe, presente de forma muito homogénea, uma tonalidade, como algo palpável. Melhor descrito talvez, creditando-a como uma distância – o espaço entre duas notas dissonantes. Uma suspensão azeda e incómoda, mórbida até. O que é fascinante, é que todos estes elementos se apresentam de forma coesa; aliado à assonância está a sua transitoriedade. Os corpos vão e vêm, o tempo mantêm-se o mesmo. Este constante presente, pesado e inerte a que somos apresentados é resultado da sua equidistância.
Continuamos na demanda de nos imprimirmos na matéria, Central de Paris é como tudo o triunfo da
resistência da saudade.

Gabriel Nery

PEPEDRILO, 2021

Realização VICTOR CARTAS Argumento VICTOR CARTAS, ISABELLA HERNANDÉZ SANCHÉZ, SEBASTIÁN
SANTANA TALAVERA Produção GABRIELA RUVALCABA RENTERÍA Participação JOSÉ ELEAZAR MARTÍNEZ
RODRIGUEZ

Pepe para uns, Pepedrilo para outros, o personagem principal deste documentário de Victor Cartas faz da sua missão a sua vida. Face ao nosso colapso civilizacional e perante o caráter intrinsecamente destrutivo do capitalismo, Pepedrilo recoloca em cima da mesa a importância e a relevância de repensarmos a nossa forma de coabitar o mundo. Mais do que de um cuidador de crocodilos, mais do que de um trabalhador de um santuário para espécies em risco de extinção situado na selva mexicana, Pepedrilo fala-nos de teluris-
mo, da nossa intrínseca interdependência relativamente ao que nos rodeia (pessoas, animais, plantas, terras, etc.). Num mundo em que os amores à pátria e os delírios nacionalistas parecem ter saído do seu estado latente para se tornarem cada vez mais evidentes, naturais e inescapáveis, apostar na nossa relação sensível com o território, com o território em que habitamos e coabitamos com outros seres, é procurar uma fuga à noção de Estado-nação. Mais do que uma questão identitária mais ou menos abstrata, o telúrico prende-se com uma relação com o nosso entorno e com tudo o que nele habita. E é dessa constatação que
Pepedrilo parte e dela faz a sua vida.

João Ayton

PARA O 5o MUNDO, 2021

Realização, BEATRIZ LOPES

Para várias tradições e mitologias da América Central e do Norte, o “5o Mundo” representa ora o mundo no qual atualmente vivemos, tendo este sido precedido por quatro outros ciclos de criação e consequente destruição, ora o mundo (o ciclo) por vir. É na senda desta segunda leitura mitológica que se encaixa o filme de Beatriz Lopes.
O mundo em estado terminal, o fim de um ciclo. As imagens sombrias do filme ressoam em nós, elas dão eco ao que se vai tornando cada vez mais evidente, mesmo aos mais ingénuos: que o mundo, tal como o conhecemos, está a acabar. Com isto não se deve interpretar o fim do mundo stricto sensu, mas antes o fim de um mundo (e, portanto, o fim de uma forma de nele habitar), coisa, aliás, implícita na própria ideia de ciclo. À fase decadente, ao fim de um ciclo, segue-se — ou assim creem os mais otimistas — uma era nova, um género de fénix renascida das cinzas. Mas é aqui que o filme se complexifica. Mais do que reiterar a narrativa dos ciclos históricos, mais do que mostrar-nos o óbvio, o filme de Beatriz Lopes empurra-nos, não tanto para um “mundo novo”, mas antes para a urgente tarefa de repensar a nossa relação com o mundo.

João Ayton